Cais
Os
amendoins do Nojento estão no final. Acho que eu também. Passei toda minha vida
numa quitinete imunda e úmida na zona pobre da cidade. Meus livros esparramados
pelo chão davam um toque especial para a decoração decadente. Sempre achei que
a arrumação era uma perda de tempo. Afinal, quando se quer alguma coisa, é
preciso encontrá-la, independente de qualquer coisa. Por isso, nunca me
importei com onde deixava isso ou aquilo.
Importava-me
com o Nojento, que passava boa parte do tempo no bolso de meu casaco, o que
facilitava as coisas para mim. Ele é um bom companheiro. Foi por isso que
aproveitei meu tempo comigo, com ele, com meus cigarros e meus sonhos. Não dei
importância para a humanidade. Foi como cheguei até aqui.
Estranho em
saber que tenho tuberculose por tanto tempo. Mais exíguo ainda, é pensar que
até agora, ela nunca deu cabo de mim. O tratamento me deixa com o estômago
torcido. Acho que essas idas e voltas para o coquetel me seguraram em pé, mas
pioraram a situação ruim que já havia dentro de mim. Essa inconstância, sempre
foi uma característica minha. A bebida e a vida me impediram de levar as coisas
de um jeito muito sério, inclusive o tratamento.
A umidade e
a poluição são um problema para pessoas como eu. Falo isso por causa da doença,
não pela minha personalidade. Por esse ponto de vista, me seria perfeito. Minha
podridão me foi boa até agora. Aliás, me sinto assim, podre desde pequeno. Não
por que fui abandonado por minha família, mas por que nunca servi para ninguém,
além do Nojento.
Ele sempre
me aceitou como sou. Assim, com minhas roupas melecadas de catarro e cheias
desse cheiro bem forte. Sempre escarrei atrás da porta, eu nem levantava da
cama para cuspir. E toda a vez que sentia aquele nódulo gosmento subir: puxava
o catarro do fundo de meu pulmão e mandava brasa. Gostava de ver escorrer.
O Nojento
amava quando eu fazia isso. Corria até lá e comia tudo que podia, desde os mais
secos, até os mais viscosos. Interessante, o que me matava, ajudava o rato a se
manter forte. Por muitas vezes pensei que minha tuberculose o destruiria, mas
não, isso nunca aconteceu. Tomara que o diabo me responda algumas perguntas
quando eu chegar lá embaixo e olhar nos olhos dele.
Ultimamente,
andava mais cansado que o normal. Passei noites horríveis nos últimos meses. É
ruim fechar os olhos e sentir que tudo está trancado. Virava o corpo o tempo
todo para me acomodar melhor e a dor nunca passou. É por isso que escolhi
colocar um fim em tudo. Hoje, tem uma semana que eu e o Nojento estamos no
cais. No dia em que decidi vir para cá, estava com o sopro dos anjos em meus
ouvidos.
Vim por que
me dou o direito de ver o morrer do sol, antes de ir. Não por que gosto dele,
mas por que ele sempre ficou longe de mim. É por isso que quero olhar para o
desgraçado antes de partir. O que acho mais engraçado, é que o Nojento não vai
embora. O danado sai por aí e tal, mas sempre volta. O deixei para fora do
bolso ainda ontem. Por que acho que ele está mais seguro assim. Um moribundo
como eu, não tem o direito de manter um vivo tão leal como ele preso, até por
que, estou na véspera de minha morte.
Ao menos
quando eu morrer, o Nojento poderá partir sem problemas. Tudo que não quero é
que o peso de meu braço o tranque dentro de meu bolso e o impeça de sair. Uma
situação inusitada dessas pode até matá-lo. Eu acho. Ainda bem que já o soltei.
Ele não só venceu a tuberculose, como também se alimentou dela. Morrer em meu
bolso seria incoerente com o que o Nojento resistiu.
Desde que
cheguei, morro um pouco por minuto. Minha respiração é cada vez mais fraca.
Tenho a sensação de que meus olhos perdem um pouco do seu brilho a cada
instante. Isso é incrível. Desfalecer no cais, olhando para o crepúsculo sempre
foi o meu desejo. Mas nunca foi meu gosto viver assim, tão mal. Ora por que
usei o remédio, ora por que não usei. Ora por que bebi demais, ora por que comi
de menos. Faz um tempo que me sinto morto.
Decidi
esperar a chegada do verão para me entregar ao destino aqui no cais, e cá
estou. Pelo que vomito, alguma coisa se agravou. Os transeuntes me olham com
cara assustada como nunca notei. O Nojento sobe em mim e desce o tempo todo — e
come o que regurgito — isso deixa os pedestres profundamente repugnados.
O Nojento é
um macho adulto, tem um rabo enorme, pesa uns dois quilos. O encontrei num
armazém abandonado tem seis anos. Desde esse dia, que nunca mais nos separamos.
Pelo visto, ele gosta de mim. Isso até me emociona. Eu vim até o cais para
morrer, e esse rato é o único que não me abandona, como os outros fizeram até
hoje.
Ele não
sente nojo quando me olha aqui, sujo, fedido, antes ao contrário, ele
transforma minha podridão em alimento e nobreza. Sei que a inanição e a rua
agravarão meu quadro clínico até o fim. É por isso que vim, eu não podia
desfalecer naquela caixa apertada. Enfrentar o mundo era o único jeito de ter
certeza de que eu veria o sol, e de que o Nojento não morreria trancado na
quitinete.
Acho que
depois de tudo que passamos, o Nojento merece viver. O cais tem muitos grãos e
é um lugar excelente para ele. Essa é minha última carta e meu último feito,
quando recolherem meu corpo, alguém pode ler isso que escrevi. É por isso que
faço questão de dizer, que o mais importante da vida, é a hora da morte, ela é
a nossa última chance.