Conta-gotas.

“Nunca esperei que pudesse amar algo com tanta força.”, ela me disse. Eu não sabia o que responder. Calado, andei até a janela e acendi um cigarro. As coisas estavam diferentes de quando nos conhecemos. Os nossos papos não batiam mais. Ela preferia o conta-gotas sempre. Insisti mais uma vez, mas ela tornou a repetir a frase de antes.
Fui para o quarto e catei a minha mochila. Pela porta entreaberta eu a olhava na mesma posição. Os seus longos cabelos haviam sumido, agora ela usava a cabeça raspada. A camisa branca que ela vestia já não era mais tão branca assim, e por entre tanta sujeita, vi alguns pingos de sangue pelo meio dela. Sua calça jeans surrada, rasgada nos joelhos me mostrava suas pernas dessecadas de um jeito febril. Os seus braços carregavam um pico em cima do outro, por entre inúmeras feridas, muitas delas infeccionadas com toda a loucura junkie do mundo. As suas tatuagens já não tinham mais a mesma visibilidade de antes, pois não havia carne alguma pra mostrá-las pra qualquer um, muito menos pra mim.
“O que faço agora?”, perguntei pra mim mesmo. Mas nenhuma resposta me ocorreu. Nesse instante algo ficou muito claro pra mim, eu já tinha a resposta. Olhei pros livros esparramados pelo meio da baderna e marejei meus olhos. “Eu tenho de ir.”, falei. Eu não sei explicar o que aconteceu, mas era como se eu não encontrasse forças pra levantar e tomar o meu caminho.
Olhei pela fresta da porta e a vi agarrada no conta-gotas mais uma vez. A sua expressão era a máscara mais insana que eu já havia visto em toda a minha vida. Em poucos segundos notei que em seu semblante brotava um lindo e suave delírio, algo parecido com prazer ou felicidade, não sei ao certo. Acho que nem ela mesma sabia o que sentia naquele instante.
Apertei a minha mochila contra o meu peito. Fiz toda a força do mundo pra chegar até a porta. Eu olhei pra ela, que fumava e mirava o vazio. “Amor, eu vou embora.”, falei. Naquele instante a única coisa que soou foi o barulho da bucha de pó sendo aberta. Pareceu um som tão forte que poderia quebrar as vidraças da nossa quitinete. Ou melhor, do que restava dela.

Desviei o meu olhar, mas permaneci imóvel, eu hesitei mais uma vez. Silêncio. Então eu entendi, era mesmo hora de ir. Enquanto eu me desmanchava por dentro e por fora, como se sumisse segundo a segundo, ela tremia ao tempo em que enfiava em suas veias a única coisa que ainda importava pra ela. Eu fechei a porta com cuidado e enquanto descia as escadas tentava imaginar o que estava por vir.

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