A doze
“O que está
fazendo?”, perguntou-me. “Pretendo caçar”. Deu meia-volta e seguiu para a
cozinha, o cheiro era de bolo de maçã. Olhei pela janela e contemplei a chuva
fria. Perdi-me, olhando o horizonte, o mar. Por toda a minha vida eu quis estar
ali. Bateu-me no ombro, era um chá adocicado, perfeito em seu aroma. “Beba,
espanta o frio”, me disse. Agradeci com um sorriso. Ela entendeu. Sempre que
Mariana fazia esse bolo com maçã, guardava as cascas para a infusão.
Sentei na
varanda e fiquei olhando a cabana de madeira. Um sonho que acabou e ainda
continuava de pé. Estranho. Talvez fatídico. Coloquei a mão no bolso e li no
maço de cigarros que servia de papel, “Eu te amo, mais do que imagina”, era da
Clara, que não fumava. Dobrei novamente em quatro partes e devolvi-o ao mesmo
esconderijo. Lembrei dela comigo, os dois sentados na areia, ao sol como
lagartos que se esquentavam depois do amor, eu fumegava, ela me fitava com
carinho. Era triste. Pensar em tudo aquilo me soava fúnebre. Tanto quanto olhar
pra mim.
“Em que
está pensando?”, inquiriu-me Mariana. “Em nada”, falei. Ela me abraçou,
pegou-me pelo rosto com as duas mãos e me beijou na boca. Foi bom, mas não o
suficiente para sarar meu coração. Mesmo assim, não desistiu e continuou me
acariciando. Trepei com ela ali mesmo, uma foda rápida e quente, em poucos
minutos nos esvaímos completamente. O que gostava nela era a imperfeição de seu
corpo. Mamilos grandes, quadril largo, quase sem bunda, pernas lisas e muito
longas, não era montada com próteses e bisturis ou mesmo por anabolizantes e
exercícios contínuos. Mariana era natural, eu a via de roupas como a
contemplava nua, uma bandida igual a mim.
Clara era
diferente, bonita ao extremo da perfeição. Como já disse, não fumava. Não
bebia. Estudiosa. Leal. Não quebrava regras. “Você é louco por não amá-la”,
diziam-me todos. Esse tipo de coisa a gente não escolhe. Se pudesse, talvez a
tivesse amado. Nunca consegui. Eu sempre me achei biograficamente sujo demais
para tanto. Como se a sua doçura não suportasse o meu amargo, os meus delírios
insanos de marginal decadente. Não fiz por intenção, foi por maldade genuína de
marginal, a mesma que sempre vicejou por entre os meus pelos do peito, pela
minha barba crescida, por entre os meus cabelos desgrenhados.
Clara
entregou a sua virgindade a mim nos tempos de colégio. Na verdade, eu era só um
cafajeste interessado em trepar com ela para poder dizer aos caras, “Eu a comi.
Me passe a grana que apostamos”. No entanto, ela era tão dedicada a mim, fazia
os meus trabalhos, ajudava-me em tudo, me dava dinheiro, me emprestava o seu
quarto, a sua vida era minha. Eu me sentia péssimo por isso, mas também me via
como burro se a mandasse embora. “Quem toca a sorte pra longe?”, me pergunto.
Sua família
rica, falava em dar um apartamento pra gente viver feliz por todo o sempre. Por
algum motivo me achavam perfeito, “Um escritor”, aos olhos deles isso soava
charmoso. Mas o mesmo limo que se lê em meus livros também se encontra em minha
face. Isso não é tão bonito como parece. Eles não só deram o apartamento, como
uma grana preta, imóveis, de tudo. Devo dizer que me tornei milionário à custa
de Clara e sua família.
O plano
dela era viver feliz eternamente comigo nessa mesma cabana onde me culpo hoje,
junto de Mariana, a minha eterna puta. A mesma que me ajudou a matar Clara de
desgosto. Enquanto a esposa ia trabalhar no centro marinho, eu o escritor
maldito ficava em casa, com minhas drogas, minhas garrafas de conhaque e a
minha amante, a minha puta Mariana, a qual eu sempre amei. É como se ela
houvesse comprado a corda, e eu armasse o laço. Clara só teve a coragem de
usá-la.
Numa
sexta-feira, pela manhã, fiquei em casa, escrevia um conto quando Mariana bateu
na porta. Sem dizer nada, nos pegamos ali mesmo e arrastamos um ao outro como
dois animais que não se preocupavam com nada ou ninguém além de nós mesmos. Foi
intenso como sempre fora, desde adolescentes, brincávamos que nos emprestávamos
aos outros corpos por divertimento e artimanha para esconder a nossa devoção
mútua. A gente ria, sempre!
A
encontramos juntos, assim que chegamos ao jardim nos fundos da cabana. Eu e
Mariana de mãos dadas andávamos com o baseado aceso em direção ao banco embaixo
das goiabeiras. Ninguém disse nada, nem eu e nem Mariana. Clara estava ali,
pendurada pela corda, toda roxa, olhos esbugalhados e com a língua preta para
fora de sua boca.
Nem eu e
nem Mariana somos os mesmos. Esse pesadelo não acaba nunca, embora não tenhamos
falado nisso, os nossos olhares trocados sabem de tudo que percorre os nossos
corações. Diariamente, incansável esse lobo nos persegue, eu sinto a sua
presença a todo instante, a me mirar de perto. O que acho mais estranho é que
eu tenho certeza de que Mariana sente a mesma culpa que eu. “Amar é perverso”,
escreveu-me Mariana, num maço de cigarros, que também guardo em meu bolso,
dobrado em quatro partes.
Quando a
pego em lágrimas, ela logo disfarça, “Por que chora?”, pergunto, e, em seguida
escuto, “Por causa do amor”, imediatamente me sorri, me abraça e me beija e
fode comigo como uma louca. Passa horas me chupando, me tocando e me lambendo
as bolas, afagando minhas virilhas. Parece que tenta se afogar em mim, como se
pudesse evitar o que sentimos nos espreitando, como um lobo faminto.
Mantenho a
escopeta doze, sempre limpa e carregada, ao alcance, ao lado da porta do
quarto. Ouço o lobo dia e noite. Ele corre em meus sonhos, em meus sentimentos,
em minha varanda, em meu jardim. Eu o vejo em tudo e o encontro em mim mesmo
assim como Mariana também se depara com ele, não sei ao certo de que maneira,
mas sei que sim.
Certamente
que nos falta coragem, a mim e a Mariana também. A minha única dúvida é, “Quem
usará a doze primeiro? Eu ou ela?”.