O dia da execução
“Certamente
que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e
habitarei na casa do senhor por longos dias”, Salmo 23 – 6. Eu não sei
exatamente em que acredito, mas o fato é que os humanos precisam crer em algo,
só isso. Tento pensar que ler algumas linhas da bíblia antes de encontrar com o
prisioneiro me faz bem. Não sei se faz. Mesmo assim, caminhava firme e procurava
confiar que a bíblia me confortava como precisava. O corredor estava frio.
Havia pouca luminosidade nesse dia. Podia ver as sombras dos condenados se
movendo em suas celas. Era como se as suas almas deixassem os seus corpos e
pudessem vagar com toda a liberdade para além das grades.
Cheguei até
a cela. Parei. Olhei para o sujeito. Eu estava diante do matador mais cruel de
que já ouvi falar. Ele não se moveu quando me viu. Havia quatro guardas e o capelão comigo. “Vou
entrar para conversarmos”, avisei. Sentado na cama, não abriu a boca. O
quarteto sacou suas armas, pois o procedimento é esse. Enquanto isso, o capelão
permanecia imóvel, ao tempo em que segurava a bíblia junto ao seu peito, certo
de que logo seria chamado. Sentei ao seu lado. Olhei firme em seus olhos. Ele
correspondeu a minha encarada. Havia consistência e frieza entre nós. “Sabe que
precisa me acompanhar”, pontuei. “Sim, eu sei!”, respondeu. “O que gostaria de
saber?”, perguntei. “Eu não tenho perguntas”, replicou. Em todo caso, eu tinha
de falar uma série de coisas. O prisioneiro precisa entender o procedimento. A
lei prevê informá-lo de tudo. É um direito assistido aos condenados à pena de
morte.
“Tem
direito a fazer um último pedido antes que eu venha buscá-lo, às dezoito
horas”, expliquei. “Quero uma faca e uma pessoa para que eu a degole”, disse o
assassino. “Eu não posso fazer isso. Além do mais, duzentas e oitenta degolas é
o suficiente”, ponderei, ironicamente. Ele permaneceu calado. “Que tal outra
coisa?”, sugeri. “Gostaria de beber um copo de sangue”, falou. Ele fazia isso
depois de degolar suas vítimas. “Posso falar com o cozinheiro e pedir para que
guarde o sangue de um dos frangos que teremos para o almoço”, respondi,
novamente com ironia. “Então eu não quero nada”, afirmou. “Deseja almoçar?”,
insisti. “Não!”, respondeu-me.
“Quer
conversar sobre algo? Qualquer coisa?”, disse pra ele, que permaneceu quieto.
Eu olhava um homem frio. Muito frio. A impressão que tinha era a de que o
prisioneiro era mórbido por dentro. Não demonstrava nenhuma alteração
emocional. Como se fosse de pedra. “Você fuma?”, me intimou, quebrando o
silêncio. Mostrei o maço de cigarros que ainda estava lacrado. “Eu fico com
eles”, completou. Era o seu último pedido, ao menos foi como interpretei. Dei o
maço a ele, e uma caixa de fósforos. “Pode conversar com o capelão se quiser”,
falei. “Eu não creio em deus, eu creio no diabo”, rebateu.
“Você
andará sem algemas pelo corredor. Ninguém vai te tocar. Chegará até a sala
pelas suas próprias pernas”, informei. Ele não me comentou nada, mas notei o
seu olhar fixo em meus olhos. Silêncio. Algum tempo depois, “Eu não temo a
morte. Eu a amo!”, me disse. “Preciso revelar mais alguns detalhes referentes
ao procedimento”, observei. “Vá em frente”, atendeu. Eu podia sentir a vontade
com que fumava. Um pedido bem razoável e, em todo o caso, mesmo sabendo que
havia dado o meu maço de cigarros, continuei tranquilo, porque tinha outro no
carro.
Contei tudo
em detalhes; sem esconder nada do cara. Não me interrompeu em nem um único instante,
manteve-se anônimo o tempo todo. “Eu não tenho mais nada a lhe confirmar quanto
ao procedimento. Alguma dúvida?”, falei. “Quero que fique com o meu diário.
Leia se quiser!”, me disse e, acendeu outro cigarro. Mais um pedido, o segundo.
Confesso que fiquei curioso. Então, como sabia que a sua cela seria limpa no
dia seguinte e, que todos os seus pertences teriam o fim apropriado, já que não
tínhamos notícias de nenhum parente interessado, aceitei.
Andei até a
porta da cela, mas, antes que saísse, o capelão deu um passo adiante, como quem
me esperava sair para entrar. Coloquei a mão em seu ombro, “Ele não deseja
falar com o senhor”, disse. O capelão fez um rosto como quem realmente não
acreditava, mas interrompeu o seu movimento e aguardou no corredor. Tranquei o
cadeado e os guardas recolheram suas armas. Andávamos lado a lado e nenhuma
palavra era pronunciada.
Quando
saímos da ala da morte, combinei tudo com os guardas e o capelão. Ficamos a
sós, eu e o capelão, que insistia em permanecer diante de mim. “O que o senhor
deseja?”, perguntei. “O que é isso?”, disse, apontando para o calhamaço de
papel que eu segurava. “Ainda não sei. O condenado falou que era um diário.
Deseja ler?”, indaguei. “Não. Mas espero que não se deixe levar pelas palavras
do demo, meu filho. E mesmo que este homem não deseje o perdão, vou orar em
silêncio por ele, no momento final”, afirmou, ao tempo de fazer o sinal da cruz
e sair em direção da capela.
Eu já
comandava execuções fazia um bom tempo, mas nunca, em todos esses anos de
profissão, havia encontrado um matador como aquele, capaz de sequestrar a minha
alma com um simples olhar. A sua perversidade era notória em seu semblante, em
seus gestos e até mesmo em seu tom de voz. Enquanto andava, esses pensamentos
rondavam a minha cabeça e, quando me dei conta, estava diante da porta de
entrada que dava passagem para o pátio onde estacionei o carro. A cerração
densa parecia uma cortina de frio, mas não havia outro jeito, eu tinha de
chegar ao meu automóvel para pegar o maço de cigarros.
Preparei-me
e fui ao pátio. A sensação térmica era profundamente negativa. A neblina
transformou-se em uma garoa gélida, que chegava ao meu rosto e me fazia sentir
o impacto vigoroso do clima. Entrei no carro com a sensação de que estava
congelado. Acendi um cigarro e notei a chegada da neve num piscar de meus
olhos. Já era meu segundo cigarro e o tempo não dava trégua. Olhei para o
calhamaço de papel no banco do carona: “O paraíso da morte”, como que um
título. Um dos trechos dizia, “Hoje pela manhã, olhei para a sombra e a luz que
habita o cárcere. Encontrei homens lendo em suas celas em busca de conforto. É
mais uma prova de que sou distinto deles e de qualquer um. A morte me foi
próxima sempre. Eu quero matar para encontrar o abismo. Essa é a diferença,
pois eles, em suas celas, desejam tão somente matar. É por isso que aceitam a
bíblia e o capelão. Querem perdão celestial. Eu não, eu não tenho medo da
morte”.
Enquanto
lia o seu diário, o degolador me soava ainda mais fantasmagórico e letal devido
a sua psicose. Algo monstruoso como eu jamais havia encontrado, nem mesmo no
corredor da morte. Cativo, segui com a leitura: “Sei o que sou. Mato porque
essa é a minha natureza. Uso a faca e aprendi todos os seus segredos. Estudei
muito de anatomia. Quando cursei medicina, me debrucei aos cadáveres para
aperfeiçoar a minha técnica de corte e fazer o que faz um escorpião, matar”. Os
vidros embaçados e a fumaça do cigarro tomaram conta do ambiente. Sem saída, eu
abri o vidro do carro e tentei aguentar a nevasca. Olhei o centro de contenção
e me peguei pensando que, além daquelas muralhas, o degolador esperava pelo seu
carrasco.
Foi um
alívio quando ultrapassei a porta e encontrei o calor que vinha do sistema de
calefação. Peguei um café e acendi um cigarro. Fiquei ali, parado, na
expectativa pelo momento final. Eu tinha trinta minutos ainda. A cada gole de
café, dava uma tragada profunda. Depois de três cigarros e três copos de café,
ouvi uma voz, “Está na hora, meu filho”. Era o capelão, acompanhado pelos quatro
guardas e o médico responsável. De volta ao corredor assombroso, pensava na
morte e, nem me dei conta de quando cheguei até a cela. Só parei porque notei a
freada dos que estavam comigo. O degolador estava em pé, diante da porta.
Imóvel, olhava em direção aos meus olhos e mantinha suas mãos na vertical.
O condenado
não criou problemas e caminhou pacificamente até a sala de execução. Deitou-se
na maca e acomodou-se na posição adequada, como eu o instruí. Passei as cintas
de couro em seus tornozelos, em seus braços e em seu tórax. Depois conectei a
agulha em sua veia e aos canais que conduziriam três drogas para a sua corrente
sanguínea. Enquanto isso, o capelão se pôs ao seu lado e, calado, o olhava com
caridade. Provavelmente rezava em silêncio, como disse que faria. Na sala de
expectador, do outro lado do vidro grande e espelhado, sabia que estavam as
testemunhas. Não sei quantas, mas devia haver uma plateia lá fora,
representando suas vítimas. Do outro lado do vidro menor e também espelhado, no
ângulo oposto da cabeça do condenado, o médico aguardava por mim. Existe um
sinal previamente combinado, entre eu e esse médico. Mas o condenado nunca sabe
qual é. Estava tudo pronto. “Quais são as suas últimas palavras?”, perguntei.
“Torna-te aquilo que és”, respondeu, citando Nietzsche.
Chegou o
meu momento. Cruzei meus braços. Era o meu sinal e, o ritual de execução
iniciou. Primeiro recebeu uma aplicação de Pentanol de Sódio, um sedativo
anestésico que o induziu ao sono em trinta segundos. Segundo, ganhou uma dose
de um agente paralisante, Pancurônio Bromide, que estagnou todos os seus
músculos. Terceiro, enfrentou uma última quantidade de uma droga final, Clorido
de Potássio, que parou o seu coração. Um procedimento de quinze minutos. Chamei
o médico designado, que verificou seus sinais vitais e constatou a morte do
sanguinário e lendário degolador. O capelão fechou os olhos do morto e fez o
sinal da cruz, antes de sair na companhia do médico. Eu fiquei ali,
petrificado, olhando para o cenho pálido do matador mais cruel que conheci, ao
tempo em que recordava um trecho do seu diário: “No dia da minha execução, vou
pro inferno. E lá, por entre as chamas ardentes, esperarei pela chegada do meu
carrasco. Para degolá-lo aos olhos do diabo e beber o seu sangue”.
Não demorou
muito e a turma do saco preto chegou, “Com sua licença”, disse um dos rapazes.
A sua fala quebrou o meu transe e eu percebi que tinha de ir. Assim que passei
pela porta, encontrei o médico, os quatro guardas e o capelão, que fazia uso da
palavra, talvez tentando iluminar o dia funesto. No entanto, não compreendi
nada do que pronunciava. “Então, que tal um café?”, disse um dos guardas. “Não,
obrigado. Vou pra minha casa”, argumentei. E antes que ouvisse qualquer coisa,
saí andando.
Eu tinha
muito a pensar. Quem sabe até a temer.