Agonia na cadeira de balanço
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O casarão é
mórbido e enorme. Fica perto de minha casa. Sempre que tenho de passar em
frente, atravesso a rua. É um lugar medonho de dia e de noite. Antigamente,
sede de uma fazenda, que com o tempo, fora engolida pela cidade. Um lugar
pesado e cheio de agonia.
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“Veja, meu
amor, Francisco de Goya é o maior pintor que conheço”, comentava George,
empolgado, ao tempo em que contemplava “Saturno Devorando Seus Filhos”. Ela não
disse nada, mas sorriu, olhando-o com seus olhos azuis. Helena esticou seu
braço, oferecendo sua mão ao marido, que atendeu a sua iniciativa e apanhou-a,
ao tempo em que seguiram para a varanda, onde George, gentil, a acomodou na
cadeira de balanço. George trabalhava como restaurador de obras de arte, e
achava que a mudança para a fazenda, herança recebida de seu pai, era oportuna,
tendo em vista que, pensava em aumentar a família e tinha a chance de viver
bem, sem problemas financeiros cuidando do gado e aproveitando um dos cômodos
da majestosa casa como espaço para se dedicar à arte da restauração. Helena,
moça prendada sentia-se honrada em seu casamento, que até o momento era
estável, tanto financeiramente quanto amorosamente. Casou-se virgem e um de
seus medos era não contentar seu marido, pois desejava um companheiro feliz,
apaixonado e encantado nela por todo o sempre. O seu romantismo, a fazia amá-lo
sem discutir os desejos de seu esposo, tanto na cama quanto fora dela. Muitas
vezes, depois do sexo, Helena pensava em sua mãe, ou melhor, em como a mesma
agiria se soubesse o que sua filha era capaz de fazer, “Certamente que se
horrorizaria”, pensava, e diria que “Algumas coisas não cabem para uma mulher
de respeito, esse tipo de fantasia, os homens devem procurar fora de casa, com
as meretrizes”. Mas Helena não pensava assim, embora discreta, decidiu que
seria uma dama para a sociedade e uma vadia na cama de seu homem. George
chegava cedo em casa e desfrutava de sua companhia enquanto ouviam música e
apreciavam um bom vinho. Nesses momentos, ele falava vigorosamente sobre o
valor artístico que cobria aquela casa, construída de acordo com o romantismo
espanhol. Esse seu gosto pela arte espanhola, refletia-se também, em seu enorme
apreço por Francisco de Goya, do mesmo modo que seu pai nutria. Embora o tom
culto da conversa, no fundo, ele mantinha-se altivo e polido por que queria
impressioná-la, como retribuição, pois sabia que após o jantar teria o prazer
de uma esposa cortesã em sua cama, algo sem etiqueta e por demais
recompensador.
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O varão
Gabriel nasceu lindo, com os olhos luminosos da mãe e o rosto de formato
triangular como o de seu pai, que adornado pelos cabelos encaracolados o faziam
parecido com o avô, um traço marcante, tal qual o pai de George. Helena, feliz,
radiava alegria ao amamentar o seu mais novo amor. Dedicada, não desgrudava
dele nem por um segundo. Mesmo com os paparicos que possuía, ela preferia
dispensar a criadagem para ater-se somente ela ao pequeno menino. Em um
domingo, George chega, adentra no quarto e a toma em seus braços, dando-lhe um
profundo beijo, um tanto quente, antes de qualquer palavra. Helena segura
Gabriel junto de seu peito, tentando protegê-lo, devido ao rompante febril por
parte de seu consorte, livra-se dele, usando seu outro braço e diz, “Cuidado,
George, cuidado com o Gabriel!”, depois sorri, espremendo seus olhos claros e
raiados de azul, como quem espera compreensão. George devolve um sorriso, “Por
onde anda a minha vadia?”, pensa, mas não diz nada. Ele insiste, ela esquiva-se
mais uma vez, dizendo que precisa amamentar o filho e que o jantar está
próximo. Contrariado, ele cede, e toma o caminho da sala. “Ela não me ama”,
pensa George, “por onde anda a minha vadia?”, lamentou-se, ao tempo em que
subiu seu olhar para o quadro de Saturno e completa seu raciocínio, “Ele comia
os próprios filhos”. Helena desce as escadas e chega. No mesmo instante, entra
a criada e diz: “Com sua licença, o jantar está servido”, inocente, quebra uma
silenciosa troca de olhares entre o casal. “Vá querida, eu preciso trocar minha
camisa”, mente George, que toma o caminho da escada, mantendo seu olhar no
quadro, ao tempo em que pensa, “Agora, entendo Saturno”. Helena está à mesa e
espera pelo esposo, quando ouve o choro. Imediatamente, levanta-se e corre para
o quarto. Ao abrir a porta, depara-se com George, que devora os miolos de
Gabriel. Parte pra cima dele. O pranto de Helena impera, para que Gabriel
cale-se. George é mais forte, e nem de perto lembra aquele homem elegante,
educado e inteligente. Helena caiu no chão pelo empurrão que recebeu. Ainda
mastigando os miolos do filho, George se aproxima. Olha para Helena, bate em
seu rosto, nada diz e a possui. Ela tenta escapar. Não consegue. Logo que
ejacula, ele foge ainda seminu, saltando pela janela em direção ao campo
aberto.
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Duzentos
anos depois, ouve-se choro de criança, o pequeno Gabriel não vai embora. Os
passos são de George, que usa o corpo de Saturno enquanto persegue o menino. A
cadeira de balanço na varanda nunca cessa o seu movimento, para frente e para
trás. É Helena, agoniada.