Diário de um interno no manicômio Jean Cloude Barnett
“Só que ele
estava com um humor infernal, porque tomou aquela pílula, entendem? Não sei que
tipo de pílula era aquela. Uma pílula vermelha”, Stephen King.
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“Estava
sentado em minha cama. É sempre assim, eu tenho esse canal aberto com outros
mundos, outras dimensões. Entende? Foi do nada, abriu um abismo no chão, cheio
de dentes, que me engoliu e me atirou numa estrada fantasmagórica”.
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Estava
perdido. Os calos e as bolhas em meus pés tornavam-se quase insuportáveis,
andava fazia dias. Acho que era por isso que a minha mochila estava mais pesada
que o normal. Enquanto tragava o cigarro, soltava a fumaça e sentia uma espécie
de papa na boca, por causa da secura do ar e da textura do monóxido de carbono
que os carros lançavam ao passarem por mim, me ignorando completamente,
pareciam até que fugiam de alguma coisa ou alguém.
“O vale da
morte”, dizia a placa pela qual cruzei. Olhava em minha volta e via a vegetação
rude acompanhada de um clima de desesperança, um lugar cheio de corvos e
chacais, os quais se mostravam nervosos e me rondavam na espera pelo momento
certo. Passo por passo eu seguia pela estrada de asfalto, tentando mentir para
mim mesmo que não me sentia exausto, e que não havia perigo algum por perto.
Pelo
caminho, notava dezenas de pedaços de corda espalhados ao longo da faixa e não
entendia por quê. Isso ficou em minha mente, zombando em meio aos meus
pensamentos e ao pulsar de meu coração. Lá pelas tantas, encontrei um grupo de
homens maltrapilhos que andavam em fila, como se estivessem marchando. “Você
tem água?”, perguntei ao velho, o último deles. Silêncio. Insisti. Silêncio de
novo. O cara estava estranho, seus olhos eram fundos e além de fedorento,
parecia dentro de um transe. Arrepiado e sem entender muita coisa, segui o meu
caminho, me distanciando deles rapidamente.
A cada
curva, mais montanhas surgiam, mais pedaços de corda eu contava, mais corvos
sobrevoavam o céu, mais chacais me espreitavam e mais andarilhos com jeito de
zumbi surgiam diante de meus olhos. A única coisa diferente era o cheiro forte
de carniça, que passou a apanhar as minhas ventas e entranhava em minha alma.
Por um instante, achei que sofria de miragem, e olhando para o horizonte,
percebi uma espécie de vapor que subia em direção ao céu. Eu me sentia num
caldeirão maldito, fervente, sem sorte e desesperançado como nunca.
Nauseado,
apoiei meus punhos em meus joelhos e inclinando-me para frente, vomitei o nada
que habitava o meu estômago. Nesse instante, me senti tonto, como se tudo em
minha volta girasse cada vez mais rápido. “Merda!”, resmunguei, com a boca suja
e uma tremedeira incontrolável. “É meu fim”, pensei, enquanto experimentava uma
queda livre e notei a minha cabeça bater no chão. Com o olhar ainda turvo,
percebi que andarilhos passavam por mim e me ignoraram. “Estou abandonado por
Deus”, pensei.
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Não sei
dizer por quanto tempo permaneci apagado, só sei que quando acordei, se
proliferava uma dor enorme em meu estômago, e a secura da minha boca se
mostrava ainda mais insuportável. “Preciso de água”, pensei. Cheio de
dificuldade, consegui sentar. Fitei ao longe e avistei uma multidão, todos ao
redor de uma grande árvore, “Será uma miragem?”, pensei, “Não pode ser!”, repensei
imediatamente, como quem tentava trabalhar a mente para superar o cansaço, a
dor e a desgraça.
Aos poucos
me dei conta de que havia um número infindável de varejeiras ao meu redor, elas
sentavam em mim e me enojavam de um jeito porco. Levantei! A cada passo, meus
pés doíam ainda mais fatigados, acho que até a minha alma estava entregue ao
esgotamento. “Preciso chegar até lá!”,
pensei.
Perto da
multidão, foi dantesco! Havia uma legião de zumbis entregues ao suicídio. Os
corvos e os chacais atacavam aqueles cadáveres pendurados nos galhos da árvore
como quem engolia uma presa. Cena forte. “Por isso tantos tocos de corda”,
deduzi. Aquele bando de zumbis permanecia em transe, ao tempo em que um a um
enforcava-se, tal qual quem procura a morte como salvação!
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Contornei o
caminho e segui, mesmo com sede, acompanhando a estrada maldita. Mais duas
horas andando e finalmente, olhei para trás e não vi nenhum daqueles zumbis
andarilhos. Aliviado, respirei! No entanto, a minha cabeça doía. A náusea e a
sede continuavam. O cheiro ficava cada vez mais insuportável. Aos poucos um
nevoeiro recheado de nuvens tomou conta de tudo e a estrada transformou-se em
uma ponte, “Não pode ser!”, exclamei, “A estrada virou uma ponte no meio das
nuvens”, completei. Agarrei-me no corrimão e olhei para baixo, foi quando
avistei a árvore e os zumbis enforcando-se. “Definitivamente é uma miragem”,
concluí.
Imediatamente,
antes que houvesse tempo para tomar qualquer decisão, elas surgiram enormes,
por todos os lados, maiores que um elefante, voando em volta e investindo
contra mim. Desesperado, corri para o centro das nuvens, no intuito de escapar
das moscas varejeiras gigantes, “Que mundo é esse?”, pensei.
Corri o
mais que pude e só parei quando avistei uma torre quase infindável de tão alta
e suspensa do chão. Como pode uma construção milenar e imensa como essa, surgir
diante de mim, assim, levitando. Havia todo o tipo carcaça lá. Era como se a
cada passo meu, mais eu me entranhasse naquela dimensão horrenda. O cheiro era
ainda pior, e vermes com mais de metro andavam de um lado para outro
chafurdando as ossadas, “Vermes comendo ossos”, pensei, “Senhor, por que me
abandonaste?”, completei.
Eu não
tinha para onde ir. Para qualquer lado que olhasse, me parecia uma direção
errante e dantesca. Um esquecimento tomava conta de minha mente, e nem de meu
nome eu lembrava mais. Algo me dizia que estava perdido e nada tinha a fazer a
não ser seguir em frente, mesmo que não soubesse, onde estava, quem era e como
faria para sair dali, e foi assim que continuei: petrificado, em meio ao
medonho.
Fiquei
admirado, quando, num passe de mágica uma escada enorme estendeu-se diante de
mim, ligando o portão da enorme torre suspensa ao solo. “Céus, que feitiçaria
macabra é essa!”, pensei confuso. Aí soprou um vento tremendo e uma tempestade
de fogo formou-se no céu, a terra rachou, sendo dominada por fendas enormes de
onde também brotava fogo e vermes que tomavam direção a mim. Ainda antes do
primeiro passo, “São elas de novo!”, gritei, as moscas varejeiras gigantes
estavam de volta a me perseguir com suas asas ardendo em flama. “Que praga é
essa!”, pensei. Quando vi os zumbis enforcados, ainda com suas cordas ao
pescoço marchando em minha direção, fugi para a escada. Era minha única saída!
Ao alcançar
o primeiro degrau, fui sugado em direção ao portão, como que voando para que me
espatifasse na porta. Estatelado ou apanhado pelas criaturas, o certo era que
em minha mente e meu coração, não havia escapatória do fim inevitável. Fechei o
olho próximo da passagem, e no último segundo, senti meu corpo rolando e
truncando em todo o tipo de coisa. Com a boca cheia de terra, abri meus olhos e
chorei, pois, ao longe, avistava o meu corpo sem cabeça.
“Deus
porco!”, blasfemei, ao tempo em que perdi novamente os meus sentidos e caí na
mais completa escuridão, como quem mergulhava num poço negro e sem fim.
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Acordei.
Estava cercado de corvos e chacais prontos para o ataque. Ao tempo em que as
varejeiras sobrevoavam a abóbada e os vermes enfileiravam-se de um lado, para que
os enforcados ocupassem o outro. Quando dei por mim, eu vomitava, sem saber de
onde vinha aquilo, já que meu corpo e minha cabeça repousavam distantes um do
outro. Foi quando ouvi uma voz, “Ele está no meio de nós”, e uma serpente
enorme surgiu, para pregar seu olhar em mim, e as demais criaturas responderam:
“Orações ao alto”.
Tinha a
impressão de que estava no subterrâneo, ao centro da terra, “Será o inferno?”,
perguntei a mim mesmo ainda em silêncio. “Não está no inferno!” disse a
serpente gigante. “Ela lê meus pensamentos. E agora?”, pensei. Percebi que nada
tinha a fazer. “Onde estou?”, perguntei. “Quer mesmo saber...?”, respondeu-me a
serpente. Disse que sim, que obviamente queria. Afinal eu precisava ao menos
entender o que estava havendo. “Está em sua mente, dentro da sua cabeça. É por
isso que perdeu o seu corpo”, disse o ser medonho, “E ficará aqui para sempre.
Ouviu!”, completou em seguida, me olhando com seus olhos enormes, colocando sua
língua nojenta pra dentro e pra fora entre uma palavra e outra. “Mas a minha
mãe disse que eu preciso mudar isso”, respondi. “Esquizofrenia não é uma
doença... É um dom... Um poder...”, me disse a serpente, “E a sua mãe não o
ama! Entendeu?”, falou de novo, completando a frase. Ele tinha razão, “Ninguém
gosta do que vejo”, pensei calado. “Quando o seu pai morreu, foi ela quem
atirou, e não você!”, disse a serpente. “Por que ela fez isso?”, perguntei.
“Ela queria se livrar do seu pai e culpou você. Por isso está no manicômio
judiciário”, explicou-me. Não disse nada em resposta, mas pensei em suas
palavras. Veio-me na memória aquela noite, quando o meu velho descia as
escadas. Lembro de ver os dragões voando em cima da gente. Eu atirei nos
dragões. Eu tenho certeza disso! “Foi mesmo ela quem atirou em meu pai”, pensei
umas duas vezes sobre isso.
Até que a
serpente voltou a falar, quebrando a paz do meu raciocínio. Então ela me
instruiu, dizendo que era para eu esperar pela próxima visita da minha mãe e me
comportar como se eu não soubesse de nada. Pra me fazer de bom moço e tratá-la
muito bem. E foi bem claro em suas palavras, “Assim que puder, agarre-a pelo
pescoço e não solte mais. Ouviu bem?”. Eu continuei quieto, calado, pensando em
tudo que sofri desde que fui jogado aqui nesse depósito. Sim, eu vivo num
depósito cheio de horror. Um manicômio judiciário é isso. “E anote tudo para
não esquecer de nada”, me disse a serpente. Depois disso não me lembro de mais
nada, e quando me dei conta, estava de volta em minha cela.
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Chegou o
dia. Acordei cedo. Era dia de visita aqui no Jean Cloude Barnett. Estava
ansioso para vê-la, “Meu filho! Como vai?”, ela me disse, assim que me viu.
Ainda diante do guarda, respondi, “Que saudades mãe”. Sentamos em minha cama, e
aquele tranca-rua, como chamamos os guardas aqui, ali, em pé, como se fosse o
mais poderoso do mundo.
Só que os
meus poderes não se comparam com os dele. E depois, eu vivo em mundos em que um
sujeitinho como ele não duraria nem cinco minutos. “Imagina, a serpente engole
um cara como ele a hora que ela quiser”, pensei, “E eu, bem, eu posso mandar os
dragões pra cima dele sem cerimônia. Basta eu querer”, completei o raciocínio
ainda em silêncio, esperando o melhor momento para agir.
“Quer um
suco?”, me disse. “Sim, mãe”. Ela me serviu. “Obrigado!”, respondi, ao tempo em
que mordi um pedaço de bolo. Assim que ela deu suas costas, notei que o tal
tranca-rua estava relaxado um monte. “É agora”, pensei, e, voei para cima. Ela
não falava nada. Eu ouvia os seus engasgos simultâneos, e também notava que
mudava de cor, mas eu não soltava a sua garganta. O guarda de merda socava as
minhas costas e a minha cabeça. Ouvi a campainha de alarme de segurança e os
seus gritos, “Solta! Solta!”. Quando conseguiram me tirar de cima dela, já estava
sufocada, com seus olhos esbugalhados e a língua de fora.
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“Satisfeita
comigo, a serpente gigante disse que não vai me engolir”.