Humanos fedem
Apertei o
pneu e empurrei com força. Cheguei até o criado mudo. Abri a gaveta. Estava lá.
Reluzia. Saquei o tambor, seis balas. Rolei-o com um toque de dedo e, num golpe
curto devolvi-o para o seu lugar. Estalou seco! Gosto de ouvir o som do
encaixe. É como uma espécie de ritual. Algo que me dá prazer.
Usei a
outra mão e voltei para perto da janela. Vi meu reflexo nele. Estava limpo. Um
matador como eu, metódico, aprecia a morte desde o seu início. Entende?
Coloquei a arma junto de mio core, como prefiro. Um Raging Bull, cano dez
polegadas merece esse cuidado. O 45 foi uma encomenda das mais apropriadas,
para a minha arte. É assim que vejo a morte, como arte.
Já na rua,
o breu da escuridão apanhava as calçadas sombreadas pelas árvores em meio ao
canteiro central da avenida. Aproveitei o terreno e deslizei pelo passeio.
Escutava o soar das rodas ao tempo que me aproximava do lugar. Lucrei as mãos e
acendi o careta. A fumaça ia embora e eu sentia o gosto que só o filtro
vermelho pode dar.
Entrei.
Fiquei ali. Precisava identificá-lo. Acendi mais um cigarro. Foi o jeito que
encontrei para colocar minha mão dentro do casaco e conferir a posição da arma
sem chamar atenção. A discrição é a alma do crime. “O que vai querer?”,
perguntou o garçom. “Duas doses de conhaque, sem gelo e um cinzeiro”, falei.
“Algo mais?”, insistiu o cara. “Não”, concluí, ao tempo em que bati a cinza do
crivo no chão, como quem diz, “Anda logo”.
Estava
quente lá dentro e, embora o meu casaco escondesse minha arma, as pessoas não
desgrudavam seus olhares de mim. Um homem chama atenção quando usa uma cadeira
de rodas. Eu sabia que me viam como um fraco. “Idiotas, otários, filhos da puta
mesmo!”, pensei.
Ele voltou,
entregou a bebida e me olhou. Assim que o encarei, desviou o olhar, depositou o
cinzeiro, me apresentou a ficha de consumação e deu o fora. Tomei um gole
fundo, enquanto sentia o gosto do tabaco em minha boca. Era ele. O homem que eu
procurava. Cabelos negros, olhos verdes, queixo comprido, orelhas grandes, magro,
alto e jeito de idiota. Tudo igual a tal foto que recebi de meu
cliente/contratante.
Peguei-me a
pensar em que ele teria feito. Um sujeito assim, não me parecia perigoso. Em
todo o caso, esse é o meu trabalho, a minha arte, saca? Eu não questiono motivos,
só discuto um valor e um rosto, o resto não me importa! No entanto, a
discriminação com que me olhou já era suficiente para que eu sentisse vontade
de mandá-lo pro inferno.
Assim que
terminei o conhaque, paguei a conta e fui pro estacionamento. Encontrei o Opala
azul-marinho e, a placa batia com a descrição que recebi. Não tinha erro. Vi
que havia uma árvore ao lado do portão de entrada e fiquei ali, fumando na
escuridão, acariciando a arma, na espreita.
Quatro da
manhã, o idiota fecha a porta do bar e anda em direção ao seu carro. Estamos eu
e ele. A rua é deserta. Ele vem com aquele seu jeito de songamonga e nem
desconfia. Empurro as rodas e chamo sua atenção com o barulho que os pneus
fazem em atrito com o solo.
Ele me olha
e, com a cadeira de rodas ainda em movimento, saco a arma e disparo três vezes.
Aproximo-me e atiro de novo, bem no meio da cabeça. O disparo parte o seu
crânio em mil pedaços e o sangue escorre pelo chão. Olho para os lados e não
vejo ninguém. Guardo a arma e trabalho com as minhas duas mãos em sentido
contrário uma da outra, uma para frente, outra para trás. A cadeira gira;
empurro de novo e vou embora.
Chego até
minha casa, pego o celular e escrevo: “Humanos fedem”, escolho o número e
envio. O meu cliente/contratante sabe que o serviço foi feito. Satisfeito, pego
a garrafa de conhaque. Sirvo-me. Acendo um cigarro e saboreio o tabaco com o
teor do álcool que se instaura no céu da minha boca. Recosto minha cabeça na
parede e penso, “Matar é mesmo uma arte”. Eu me sentia bem; forte como se
pudesse andar com minhas próprias pernas.