Está chovendo e as caixas estão quase todas vazias, ainda bem

Normalmente,
levo a minha vida sem horários definidos,
sem regras,
sem nada,
só que nos últimos tempos,
isto mudou,
mas é por uma boa causa.
Eu reviso,
eu edito,
eu faço oficinas literárias dentro e fora da internet,
nas escolas e nas universidades,
eu mantenho grupos de estudos literários e textuais,
e eu também escrevo feito um louco,
é o único modo que encontrei pra seguir,
eu sou um polvo,
um mutante,
sabia?
Seja segunda,
terça,
quarta ou quinta,
lá estou eu,
isto já tem quase um mês que neste horário,
5h,
percorro as estações de ônibus,
os cafés,
as padarias,
as ruas,
os botecos onde os trabalhadores ganham peso,
e nestas horas eu sou uma mosca matutina,
sabia?
Porém,
na sexta,
no sábado e no domingo,
eu me torno um ser noturno,
uma espécie de morcego a rodar os postos de gasolina,
os botecos,
as esquinas,
as pizzarias,
é assim que eu vivo,
entregando de mão em mão,
um livro pra um,
um folhetim pra outro,
um poema pra quem bebeu demais,
é assim que eu faço,
os meus coturnos já estão quase sem sola,
os meus olhos andam murchos,
o sono se mostra,
mas não me tem.
Eu já rodei mais de mil milhas,
mas eu estou vencendo,
eu prometi a mim mesmo que empacotaria mil livros no peito,
no barro e no pó,
e eu não vou parar até que consiga esta proeza.
Eu vivo no mundo real,
eu conheço as caras amassadas,
os corações odiosos,
os estúpidos e os vermes,
eu tenho muitas milhas rodadas,
cara,
eu conheço todos os becos deste principado e acho que quase todas as quebradas de toda e qualquer biboca num raio de trezentas milhas,
como eu disse,
eu rodo,
eu rodo,
eu rodo sem parar.
Também conheço produção cinematográfica,
eu conheço programas de edição de fotos,
eu conheço programas de edição gráfica,
eu conheço o que é custo por mil,
eu sei o que é manipulação de imagens,
como eu disse,
eu já rodei muito e aprendi como é a vida na real e como é o resto,
eu sei que tem de passar uma boa maquiagem pra tirar o brilho da cara,
eu sei que tem de andar rápido porque a diária do fotógrafo é cara e o patrão tem um celular de última geração,
eu sei que ele logo se irrita quando a produção não anda,
tempo é dinheiro e tudo tem um preço,
eu sei,
eu sei como é.
Mas hoje,
hoje choveu,
está uma tempestade das maiores lá fora,
e aqui dentro está tudo bem,
tem um disco rolando e um monte de caixas vazias,
muitas empilhadas pelos cantos e várias embaixo da minha cama,
eu olho pra elas e me sinto bem,
porque elas estão vazias,
eu passei um bom tempo sonhando com as minhas próprias caixas vazias,
eu queria tê-las como resposta,
e vê-las aqui,
vazias,
me enche o peito.
Hoje está chovendo e eu ficarei aqui,
hoje é dia de escrever,
porque amanhã,
meu amigo,
eu tenho certeza de que será um bom dia pra rodar mais algumas milhas,
só que hoje está chovendo e as caixas estão quase todas vazias,
ainda bem.

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