Faro de urso-polar
Sentei-me à
mesa do canto e fiquei quieto, perto de onde fritavam as batatas e serviam as
doses, ali eu me mantive por horas seguidas a anotar, a encher um cinzeiro, a
maltratar o meu fígado e a minha mente, eu não queria conversa.
A janela
entreaberta sugava pra dentro um pouco dos cheiros que havia lá fora e ao mesmo
tempo mandava lá pra fora um pouco dos cheiros que havia lá dentro, uma troca
incessante.
Não sei
dizer se esta troca é uma disputa ou não, mas entendo que a mesma seja
necessária pra que as pessoas continuem farejando o mundo, e mesmo que você não
tenha um faro de urso-polar eu confio que todos sejam capazes de usá-lo nas
mais diferentes formas e dentro dos mais distintos níveis.
Acho que o
modo e o nível de percepção com os quais farejamos dizem respeito ao padrão de
vida que cada um escolheu pra si mesmo, não acha? E embora eu não tenha a
certeza do que a multidão pensa eu tenho ideia do que eu sinto quando farejo
tudo isto e as minhas percepções não são lá muito usuais ou confortáveis pra
maioria.
Vi que do
outro lado da rua uma mulher sentou em um banco com a sua filha em seus braços
e permaneceu ali com a sua cara triste por infinitos instantes, talvez por mais
de trinta minutos, e não tirava os seus olhos da janela onde eu estava.
Eu me
sentia eternamente incomodado com a situação, tentei contar as moscas voando e
não adiantou, prestei a atenção na música que saía do rádio e ainda assim não
funcionou, procurei me concentrar na televisão que no mudo apenas mostrava
imagens e também não rolou; então eu cheguei ao meu limite e explodi: porra,
mas que merda, pensei, e imediatamente fui até o balcão e comprei cinco doses
de pinga e mandei que o barman colocasse em uma garrafa pet de 600 ml.
Logo que
sentei em minha mesa pude sentir o cheiro que atravessava toda a rua e tocava o
meu olfato de urso-polar. Eu compreendia a mensagem, sei como as coisas são e
entendo que tudo que se fala da boca pra fora não é o que se sente lá dentro, e
o que eu sacava é um crime pra muitos, entende?
Coloquei o
meu braço pra fora da janela e com um leve gesto de minha parte a mulher
levantou-se do banco onde estava com a sua filha e pegou a garrafinha cheia de
pinga, e mesmo tremendo seus lábios e seu corpo por inteiro ela conseguiu
dizer: o que quer de volta?
Pensei em
muita coisa naquele instante, mas nada do que rondava a minha cabeça me parecia
o melhor a responder, então a olhei nos olhos e logo que tomei um gole grande
do meu conhaque eu entendi o que deveria falar: quero que tome um gole, que
pare de tremer e que aguente a porra do mundo da melhor maneira que puder.
Ela abriu a
garrafa pet de 600 ml com dificuldade e deu um gole tão profundo quanto o meu,
e depois deixou que um leve sorriso mostrasse boa parte dos seus dentes e muito
da sua alma antes de sair sem nada dizer; ela tem um faro de urso-polar assim
como o meu, pensei, e isto me confortou como eu jamais achei que pudesse.