Os dois lados da mesma moeda
Estou
munido de coragem. Dizem que esta merda de programa de reconciliação dá certo. Fala-se
que colocar as duas partes, uma diante da outra: é benéfico. Parece que o
índice é muito bom. E mesmo depois de dar a eles o que queriam não ganhei nada
em troca.
Vou dizer o
que fiz. Eu matei. Queria meter um carro e matei. Ele não me entregou a chave.
E na luta: era eu ou ele. Eu atirei. Eu era o predador naquele momento. Eu
errei!
Fui preso.
Estou aqui. Vou pagar meus pecados.
Mas ela não
me perdoou. Disse que o perdão não traria seu marido de volta. Eu sabia disso
melhor do que ela.
Muito bem,
eu aceito. Não tenho o poder de purificar. Deve achar ser melhor do que eu,
mesmo sem entregar o perdão que cultiva em sua igreja.
Mas eu tive
um motivo pra meter o carro. Pra entrar pro crime. Vamos ver se me ouve até o
fim e me entrega um pouco de toda a virtude que exige.
Quando
pequeno, eles estouravam a nossa porta atrás de algo que nunca existiu lá.
Arrancavam as gavetas. As roupas do roupeiro. E as panelas de dentro do armário
e jogavam tudo no chão.
Não
respeitavam nossos trapos e nossa pobreza. Diziam, “Abre a boca, passarinho”.
Como se alguém pudesse concordar com o que não fazia ou mesmo contar o que não
sabia, ou ainda: entregar o que não tinha.
Como se
dinheiro brotasse do chão pra comprar uma porta e todo o resto que quebraram
enquanto arrancavam tudo do lugar. E no dia seguinte eu não tinha uma xícara
pra tomar o leite que tanto me custou.
E depois de
muito horror, diziam, “Vamos voltar”. E todas as noites voltavam. E embora
nunca encontrassem o que pensavam que havia ali: não desistiam. Como se fosse
obrigatório encontrar droga e roubo em nosso barraco.
Minha mãe
chorava. Eu chorava. Meus irmãos choravam. E uma noite, em meio ao caos, ela
teve um AVC, logo depois de terem feito o trabalho deles e saído.
Consegui
levá-la até o hospital com a ajuda de um taxista vizinho. Mas isso não bastava.
Voar pelas ruas até o hospital não era suficiente. Porque ao chegar: não tinha
médico, não tinha leito. “Só particular, moço”.
A minha mãe
morreu. E eu morri também. Não sobrou nada aqui dentro. Então eu jurei que
nunca mais ficaria parado naquele ponto de ônibus esperando por ele.
Sabe por
quê? Porque todas as manhãs, às 4h30min, eu esperava aquela merda pra ir até o
meu emprego descarregar caminhão cheio de areia, de cimento.
Porém,
quando aquele carro parava com suas luzes acessas, eu tremia. “O que está
fazendo aí?”, queriam saber. Ora, pois, eu morava ali. “Que culpa tinha eu de
morar ali, porra?”. Eu não podia dizer aos demais o que deviam fazer de suas
vidas ou mesmo de suas casas.
Então, eu
punha minhas mãos no muro. E o homem que queria que eu afastasse as pernas
chutava o meu pé porque desejava que eu os afastasse mais. Podia pedir. Não
precisava chutar. Eu carecia do meu corpo inteiro pra encarar um dia longo
puxando saco feito um jumento, pra ter a honra de ser honesto e ver a minha casa
demolida todas as noites, e assistir minha mãe morrer como se fosse um animal. Isso
revolta a gente. Estraga a sua cabeça e o seu coração.
É óbvio,
como dois mais dois são quatro, que ao levar um chute em meu pé, minha perna
envergava e eu mexia meu corpo. Ele chutou, porra. Aí o castigo era na segunda
costela, uma pancada que me tirava o ar. O mesmo ar que não existia pra encher
os pulmões de minha mãe naquela noite.
A vida é
pesada, não acha?
Sei que
cada ser é único. E também sei que comparar-se aos outros é fétido. Porque cada
um sente de um jeito.
Mas por favor, me
diga, “Quem pode consertar a minha cabeça e o meu coração? E mais, por que,
entre as duas partes, só eu não tive direito à justiça?”. E a mais importante
de todas as perguntas que tenho, “Você, que tem mãe, e que não me perdoa: pode
devolver a minha?”.